quinta-feira, 8 de março de 2018

GIROFLÊ, GIROFLÁ

   
          Antigamente, a palavra giroflê era empregada como sinônimo de “cravo-da-índia”. Tocada pelo universo indiano, Cecília Meireles faz um resgate do termo e atribui à sua obra. Publicada em 1956, a obra Giroflê, giroflá reúne uma coletânea de 9 narrativas – contos quase crônicas – que incluem e evocam jogos infantis e lendas que marcaram época e que levam ao leitor o encanto, a magia e a fantasia ainda presentes no cotidiano.
Para além dos jogos e lendas que fazem parte do universo infantil, Cecília Meireles também se utiliza de toda a veia poética e sensibilidade para compor as narrativas infantis com temas nem sempre de fácil trato e abordagem, como é o caso da morte e da solidão. As narrativas de Josefina e o Reino da solidão são exemplos de narrativas infantis cecilianas que abordam essas temáticas, respectivamente.
No fragmento abaixo, presente do conto Josefina, é possível perceber a sutileza da escritora ao criar e descrever a morte desde o momento da enunciação da morte da personagem Josefina pelo narrador à cena do velório e estado da personagem. 

E morreu. No silêncio de uma noite. No silêncio de sua triste alcova. Quando as flores estavam nascendo. Quando eu estava dormindo. [...]. De rosto, de corpo, de mãos, nada mudou muito. [...]. Ela fora sempre como um anjo de cera ou marfim. Suas mãos eram tão jovens, tão tenras, que, mesmo mortas, se conservavam arredondadas, sem nenhuma dureza, sem esqueleto, com a substância de suas flores, e um desenho de pombos lunares.” (MEIRELES, 2015, p. 22).


Já no conto Reino da solidão, Cecília Meireles, através da riqueza de detalhes na narrativa, tenta descrever como é a solidão em um espaço meramente infantil. No fragmento a seguir, pode-se verificar como os ambientes são criados.

“Isto é o reino da solidão. A linguagem, impossível: cada objeto possui a sua, com seus símbolos e privilégios. E o mesmo sol acorda as cintilações que a aranha gerou sem saber; descobre as inúmeras, imperceptíveis escamas da água que parecia completamente lisa; revela o fulgor de cada grão de areia, de cada poro de pedra; desvenda o sutil, imponderável esmalte de que estão recamados os minuciosos mantos das borboletas.”(MEIRELES, 2015, p. 52)

Embora seja comum pensar que as características da Literatura Infantil de Cecília Meireles se distanciem das características da Literatura destinada ao público adulto, é possível perceber nas narrativas de Giroflê, Giroflá que a efemeridade, característica presente em textos cecilianos prosaicos e poéticos destinado ao público adulto, é também característica presente.
Giroflê, Giroflá é uma obra para ser lida e aproveitada a cada instante. Para as crianças a oportunidade de passear, contemplar e se encantar com o reino dos sonhos e da fantasia; Para os adultos, a chance de reviver o universo infantil, pois há coisas que “[...] só se veem bem quando se olha de perto, quando se é criança, quando não se tem pressa, quando se está descobrindo o mundo.” (MEIRELES, 2015, p.21).




LEIA UM TRECHO DA OBRA...


Tempo de Giroflê


A vida vai sendo levada para longe, como um livro, que tristes querubins comtemplam, resignados.
Ah, mas as pálidas imagens ainda resistem: saem dos seus primitivos lugares, aparecem onde não as esperávamos, desdobram-se de outras figuras que nos apresentam, acordam as primeiras experiências, as indeléveis curiosidades do nosso amanhecer no mundo.
Eis as velhinhas, as dos doces olhos, cheios de coisas sábias, - as que nos ensinaram, quase sem palavras, só com as minuciosas rugas de seu rosto, com as grossas veias de suas mãos, quase paradas.
A doçura de viver está nas jovens sorridentes que oscilam nos balanços embaixo das árvores: olhai para os seus longos vestidos flutuantes; para as suas tranças com fitas; para os seus olhos, rápidos como borboletas; para o seu riso encarnado... E as flores caem no seu regaço... E gritam de susto, quando vão muito longe, pelo ar... E o sol enrola fios dourados nos seus braços, e o vento mostra a borla de seda dos seus finos sapatos.
A bondade está ali, - detrás daquela porta que se abre em silêncio, na sala onde a mesa está sempre posta, - com duas mãos que caminham, servindo eternamente a fruta, o leite, o pão. Inutilmente o relógio marca o dia e a noite, pois a vida é sem fim. Ninguém estremece. Ninguém pensa nas horas muito a sério. Todos se sucedem, todos lembram uns dos outros, todos estão ali à espera dos que chegam. Para socorrer. Mesmo que fosse um inimigo, Senhor!

MEIRELES, Cecília. Giroflê, Giroflá. 5. ed. São Paulo: Global, 2015.
    

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