Antigamente,
a palavra giroflê era empregada como
sinônimo de “cravo-da-índia”. Tocada pelo universo indiano, Cecília Meireles
faz um resgate do termo e atribui à sua obra. Publicada em 1956, a obra Giroflê, giroflá reúne uma coletânea de
9 narrativas – contos quase crônicas – que incluem e evocam jogos infantis e
lendas que marcaram época e que levam ao leitor o encanto, a magia e a fantasia
ainda presentes no cotidiano.
Para
além dos jogos e lendas que fazem parte do universo infantil, Cecília Meireles
também se utiliza de toda a veia poética e sensibilidade para compor as
narrativas infantis com temas nem sempre de fácil trato e abordagem, como é o
caso da morte e da solidão. As narrativas de Josefina e o Reino da solidão
são exemplos de narrativas infantis cecilianas que abordam essas temáticas, respectivamente.
No
fragmento abaixo, presente do conto Josefina,
é possível perceber a sutileza da escritora ao criar e descrever a morte desde
o momento da enunciação da morte da personagem Josefina pelo narrador à cena do
velório e estado da personagem.
E morreu. No silêncio de uma noite. No silêncio de sua triste alcova. Quando as flores estavam nascendo. Quando eu estava dormindo. [...]. De rosto, de corpo, de mãos, nada mudou muito. [...]. Ela fora sempre como um anjo de cera ou marfim. Suas mãos eram tão jovens, tão tenras, que, mesmo mortas, se conservavam arredondadas, sem nenhuma dureza, sem esqueleto, com a substância de suas flores, e um desenho de pombos lunares.” (MEIRELES, 2015, p. 22).
Já
no conto Reino da solidão, Cecília
Meireles, através da riqueza de detalhes na narrativa, tenta descrever como é a
solidão em um espaço meramente infantil. No fragmento a seguir, pode-se
verificar como os ambientes são criados.
“Isto é o reino da solidão. A linguagem, impossível: cada objeto possui a sua, com seus símbolos e privilégios. E o mesmo sol acorda as cintilações que a aranha gerou sem saber; descobre as inúmeras, imperceptíveis escamas da água que parecia completamente lisa; revela o fulgor de cada grão de areia, de cada poro de pedra; desvenda o sutil, imponderável esmalte de que estão recamados os minuciosos mantos das borboletas.”(MEIRELES, 2015, p. 52)
Embora
seja comum pensar que as características da Literatura Infantil de Cecília
Meireles se distanciem das características da Literatura destinada ao público
adulto, é possível perceber nas narrativas de Giroflê, Giroflá que a efemeridade, característica presente em
textos cecilianos prosaicos e poéticos destinado ao público adulto, é também
característica presente.
Giroflê, Giroflá é uma obra para ser lida e
aproveitada a cada instante. Para as crianças a oportunidade de passear,
contemplar e se encantar com o reino dos sonhos e da fantasia; Para os adultos,
a chance de reviver o universo infantil, pois há coisas que “[...] só se veem
bem quando se olha de perto, quando se é criança, quando não se tem pressa,
quando se está descobrindo o mundo.” (MEIRELES, 2015, p.21).
LEIA UM TRECHO DA OBRA...
Tempo de Giroflê
A vida vai sendo levada para longe,
como um livro, que tristes querubins comtemplam, resignados.
Ah, mas as pálidas imagens ainda
resistem: saem dos seus primitivos lugares, aparecem onde não as esperávamos,
desdobram-se de outras figuras que nos apresentam, acordam as primeiras
experiências, as indeléveis curiosidades do nosso amanhecer no mundo.
Eis as velhinhas, as dos doces
olhos, cheios de coisas sábias, - as que nos ensinaram, quase sem palavras, só
com as minuciosas rugas de seu rosto, com as grossas veias de suas mãos, quase
paradas.
A doçura de viver está nas jovens
sorridentes que oscilam nos balanços embaixo das árvores: olhai para os seus
longos vestidos flutuantes; para as suas tranças com fitas; para os seus olhos,
rápidos como borboletas; para o seu riso encarnado... E as flores caem no seu
regaço... E gritam de susto, quando vão muito longe, pelo ar... E o sol enrola
fios dourados nos seus braços, e o vento mostra a borla de seda dos seus finos
sapatos.
A bondade está ali, - detrás
daquela porta que se abre em silêncio, na sala onde a mesa está sempre posta, -
com duas mãos que caminham, servindo eternamente a fruta, o leite, o pão.
Inutilmente o relógio marca o dia e a noite, pois a vida é sem fim. Ninguém
estremece. Ninguém pensa nas horas muito a sério. Todos se sucedem, todos
lembram uns dos outros, todos estão ali à espera dos que chegam. Para socorrer.
Mesmo que fosse um inimigo, Senhor!
MEIRELES, Cecília. Giroflê, Giroflá. 5. ed. São Paulo: Global, 2015.
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